terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Onde para o acento?




Público 2012-01-23 Nuno Pacheco


Não estranhem o título. Se não lhe encontram sentido, saibam que, "agora", é assim que se escreve. No tal "bom português" que por aí se vende como sabonetes. Um exemplo recente: na edição dos contos de juventude de John Cheever ( Fall River e outros contos dispersos , Sextante, 2011), a mesma editora que dera à estampa os fulgurantes Contos Completos , em dois volumes e num português decente, cedeu à tentação da novilíngua. E o pobre Cheever é posto a "escrever" frases como esta (Pág. 134): "Oh, para com isso, Charles! - disse a Srª. Dexter, impaciente." Para com isso... fazer o quê, alguém explica? Cheever não pode, que já morreu. O tradutor também não, porque "é a lei" e ele não tem culpa nenhuma. A editora dirá o mesmo. E, como a vida não "para", temos que aturar isto.

Temos? Não é assim tão certo. A aplicação do acordo tem vindo a fazer-se, não por qualquer lógica ou aprendizagem mas por métodos mecânicos. Escreve-se um texto, enfia-se no Lince e já está. O Lince é uma espécie de Bimby para as letras, só que, em lugar de fazer bons cozinhados, produz péssimas mistelas. Há quem não se importe. O próprio José Saramago, em Junho de 2008, numa entrevista ao programa Diga Lá Excelência (do PÚBLICO, Rádio Renascença e RTP2), dizia: "Vou continuar a escrever como escrevo hoje. Não vou querer estar a ir constantemente ao dicionário ver se se escreve com "c" ou não. Os revisores encarregam-se disso." Mas aceitava o acordo como uma fatalidade: "Creio que temos de embarcar nesse comboio, mesmo que não gostemos muito. Não há outro remédio." Haver havia, mas tanto insensato encolher de ombros ajudou a que não houvesse. Agora o negócio não "para", como se vê.

Na sua regular crónica na revista "Atual" (sic) do Expresso , Pedro Mexia, um dos vários que ali (e bem) escrevem "de acordo com a antiga ortografia", veio na edição de 14 de Janeiro defender-se desse epíteto, dizendo que admiti-lo será "como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto "antiga": antiquada, decrépita, morta." E, a dado passo, também ele assinala "os imparáveis espalhanços de um "pára" do verbo "para" que perde o acento e talvez o assento." Já alguém lembrou, ajuizadamente, que a aplicação da nova norma a certas frases daria disparate pela certa. Por exemplo, em lugar de "greve geral pára o país", ficaria "greve geral para o país". Totalmente diferente, não? E como ficaria o título de uma das mais recentes crónicas de Miguel Esteves Cardoso, "Alto e pára o baile"? "Alto e para o baile"? A primeira manda parar de dançar; a segunda apela a que se dance. Que idiota terá sancionado isto?

Talvez todos. Talvez nenhum. O certo é que já se admite que, sim, talvez haja correcções ao acordo, não se sabe quando, mas esta poderá até ser uma delas. E o que sucederá depois, não nos dizem? Venderão os acentos à parte, avulsos, em bolsinhas de plástico, para colarmos nos livros antes assassinados por tamanha displicência? Pedirão desculpa? Indemnizarão os leitores? Serão presos? Nada disso sucederá, porque a estupidez, e não só em Portugal, não é crime. É um modo de vida. E em geral lucrativo.

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